Sombras sobre a ONU

Revista Época – Edição nº 277 de 08/09/2003.

Sem poder de interdição, o crime é sem castigo, a autoridade não existe

Não há registro de missão de paz tão insegura e frágil quanto essa da ONU no Iraque. A força de imposição e manutenção de paz visa impedir que se perpetuem os ciclos de ódio e animosidade, busca conciliação e mediação. Organiza fronteiras, não as dissolve. Não pode ser vista como parte do conflito.

A ação humanitária que a sustenta e legitima lhe dá o direito de ingerência, permite a recriação de forças policiais, reabre escolas e hospitais, impõe o toque de recolher. Permite ainda o bombardeio punitivo de posições em conflito que não abram mão de seus postos e alvos, insistindo na violação da privacidade e na carnificina. Isso se fez em Kosovo e em Timor.

A guerra se instala onde existem objetivos políticos incompatíveis e um lado quer impor código de conduta ao outro. A força de paz tem de ser superior àquela de que dispõem as partes em conflito. Do contrário, o mandato é precário, temerário de ser exercido, pois não detém o agravamento da tensão no pós-guerra. Na guerra, como na legítima defesa, não se pode tudo.

Para obter o consentimento interno e instalar o regime transitório e especial de jurisdição, exige-se o fim das hostilidades. Mas, para o Exército americano, esta é uma guerra sem fim. Impuseram um governo provisório, caçam membros do governo deposto. Como pacificar um país visto como carta de baralho em que o herói é delator por dinheiro, podendo ser vizinho, membro da própria família? Será que os Estados Unidos não perceberam que há cada vez mais coisas fora de controle dos governos, por mais poderosos que sejam?

As armas da operação de paz são a presença, o consenso, a descompressão das tensões, a não-violência. Seu mandato tem de ser objetivo, bem definido, imparcial, sem ser neutro. Neutralidade não combina com operação de paz, porque é essencial saber que é a vítima, quem é o agressor, e, no Iraque, o agressor se faz de vítima.

Todos sabem que no século XX não há nada de bom ou ruim feito no mundo que não tenha o dedo dos Estados Unidos.

Hoje, a política americana está totalmente errada. É impossível transitar da mobilização militar ativa para uma zona desmilitarizada, com ação militar preventiva que conduz ao domínio da diplomacia. Sem ocupação militar imparcial a diplomacia não crescerá e arrastará a ONU para o fracasso. Essa ilusão de criar no Iraque um protetorado é um mito dessa nova ordem mundial da geração dos Bushs.

Há períodos na história dos EUA – e este é um deles – em que o vigor moral e intelectual de seu povo não resiste ao confronto com as forças políticas fora de controle. Não há destino individual ou coletivo que se ponha a salvo desse leviatã em movimento, vociferando a apocalíptica luz interior da fé quaker em sua desconcertante simplificação das dificuldades da vida.

O mundo é composto de Estados-nação, culturas e raças próprias. A operação de paz efetiva deve ser organizada e dirigida internacionalmente com o emprego de forças multinacionais de soldados, policiais e civis, sem representar ameaça ou dúvida para os cidadãos.

Foi essa zona de sombra, essa escuridão ao meio-dia que explodiu no escritório da ONU e colheu o corpo, que durante seis horas tentou resistir, de nosso Sérgio Vieira de Mello.

Funcionário exemplar, não queria ser outra coisa na vida. Sabia ser assim, em benefício dos outros. Sua hora final chegou. Não a queria, mas também não a temia. E o que quer ou teme a ONU?

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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