Muro Invisível

O Direito brasileiro corteja mais a lei e não os seus valores

Um ano mais velha do que a queda do Muro de Berlim, a Constituição brasileira consagrou o Estado, ao contrário do que imaginávamos escrever. Vinte anos depois do fim da divisão da Alemanha, é seu lado leste, estatal, que não deixa saudades. Dois países diante do prazer de comemorar a maioridade de episódios históricos que não infundiram o senso de desesperança na sociedade. A proteção do Direito para nascer e crescer. Ou sua negligência que leva a adoecer e morrer são caminhos da vida e também das nações em movimento.

A Alemanha unificada, aberta política e economicamente, soube, por suas escolhas e nenhuma complacência com seu passado recente, avançar em direção à liberdade, ao diálogo e à regulação e tornar-se o mais poderoso país da Europa.

O objetivo principal da nossa Constituição, ao regular a democracia nascente, era ser o instrumento para pôr o Estado a serviço da sociedade. Por isso, não seguiu a tradição clássica de ser mais uma arquitetura do Estado. Não começa com a definição dos poderes, mas a apresentação dos direitos individuais dentro do contexto da sociedade. São deveres do estado para com a sociedade. Busca traduzir em expressões jurídicas as paixões nacionais. Visa à emancipação da sociedade, não a tutela do estado, nossa mais antiga e limitadora tradição.

Assim, o Judiciário deve prevalecer sobre os demais poderes, pois qualquer lesão ao direito não pode ficar fora da sua atuação. Para isso não pode estar contaminado pelo corporativismo. Notório saber, independência e o respeito moral valem aqui tanto quanto o sufrágio universal. Chamado a controlar e manifestar-se sobre a constitucionalidade da lei e os atos do Executivo, o Poder Judiciário também participa da execução e funcionamento das políticas públicas. Segue regras, mas também princípios. Não pode admitir ser usado para qualquer coisa.

Certo que a segurança jurídica avançou. Embora o direito adquirido continue a confrontar-se com o ato jurídico (imperfeito) e o prolongado tempo para a coisa julgada. Na primeira instância, a força dos interesses do patronato político inibe a autonomia dos juízes. Nos tribunais superiores, a harmonia dos interesses do patronato econômico e político muitas vezes determina a lei e a ordem. O direito brasileiro corteja mais a lei – não seus valores – do que a jurisprudência e os costumes. Agravado pelo revisionismo permanente do texto constitucional, por um Legislativo avaro em boas leis e um Executivo pródigo em qualquer lei, o Poder Judiciário acaba por também assombrar o país com tantas limitações.

Mas a morosidade do Judiciário é menos prejudicial ao sentimento de justiça do que a indiferença do Legislativo para com a renovação dos costumes políticos. Talvez aqui uma das fontes de irritação de Executivo e Legislativo com juízes que não são meros aplicadores da lei, mas também criam direito. Freios e contrapesos essenciais à mais justa noção do que seja a harmonia e independência entre poderes. Natural em países de Executivo muito forte e Legislativo demagógico. Serve mais ao espírito da Constituição um juiz desagradável, que busca ser justo e resolve controvérsias, do que o que busca ser político, não resolve ou decide errado, para fazer-se agradável.

A Constituição de 88 desconfia tanto do Estado que lhe deixou um rol de deveres sem fim. Como centrifugou todas as paixões políticas, restou a visão do Estado total sobre o desejo da sociedade autônoma.

Desde então vivemos uma constituinte permanente. Governar é fazer lei nova, falar mal da velha e chamar tal balbúrdia de programa de governo.

Permanece o país vítima do ardil que foi opor ordem social a ordem econômica por onde se funda o dirigismo arcaico do Estado. Uma polarização superada pela responsabilidade social, livre competição e a força do consumidor. Unificar o Brasil em torno do esforço produtivo e interesses da sociedade garante mais justiça e progresso do que gerar mais Estado para buscar a coesão social.

Incontornável é o estado de direito. Sob ele coube toda a Alemanha. Foi o que pretendemos como constituintes para o Brasil.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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