A sina dos árabes

Estado de Minas e Correio Braziliense – domingo, 4 de dezembro de 2011.

O impulso febril pelo movimento e a submissão são motores misteriosos da alma árabe. A atmosfera asfixiante comum à luta política na região aumenta temperada pela religiosidade e termina sempre na uniformização e homogeneização de todas as idéias. Tudo ali é precedente, passado ou tradição, e acaba apropriado pelo que pensava combater.

Mas a distorção da identidade do povo árabe não pode ser colocada somente na conta de seus líderes. Quem lhes ofereceu a fórmula de subjugar a sociedade civil, instalando-a entre duas famílias – a da teocracia e a dos militares –, foram as sofisticadas França e Inglaterra, enfastiadas dos pecados dos seus reis. Criaram países artificiais governados por leis de exceção e submetidos a tribunais de fé ou de farda, mantidos pela habilidade repressora e corrupta de seus tiranos. Até que, rompida a estabilidade do mundo ocidental no início dos anos 90, essas revoluções tardias explodiram na Tunísia, após a autoimolação de um desempregado, perseguido pela polícia.

Não é bem a tradição de luta política e partidária que alimenta a revolta contra poderes de fato, familiares e militares. Todos são ditaduras mais ou menos ferozes e as revoltas eram esperadas e queridas diante da degradação da vida humana que passou de todos os limites. Nada, pois, é novidade no agitado mundo árabe que nunca aceitou seus governantes completamente.

São movimentos por liberdades primárias, represados por no mínimo vinte anos, que não pouparão, por razões geopolíticas, socioeconômicas e culturais, nenhum país. É um exagero atribuí-las às redes sociais ou ao ímpeto revolucionário dessa geração e sua juventude convocadas pelo Facebook, Orkut, Twitter, Wikileakes. São idéias elementares de democracia que chegam muito tarde numa das regiões mais oprimidas do mundo.

Miséria e ditadura nunca combinaram muito bem. Os movimentos que agitam a região não são revoluções. São levantes típicos de países sem organizações civis sólidas, onde forças militares disputam o sistema eleitoral com as irmandades religiosas. São pseudodemocracias partidárias que convivem com o exército como poder moderador. Na Turquia, por exemplo, é considerado um avanço a Constituição prever que, se um partido religioso der um golpe, o exercito pode contra-atacar e reestabelecer a ordem laica. No Líbano, são tantas as divisões entre cristãos, sunitas e xiitas que é difícil compreender a equação entre democracia e institucionalidade. Na Tunísia a eleição depois da revolta reforçou o conservadorismo islâmico. Na Líbia, Conselhos Militares se apropriaram da fragmentação do país. Enquanto no Egito, a eterna oligarquia militar se uniu a Irmandade Mulçumana para manipular a eleição.

Quem deposita esperanças democráticas nos levantes prolongados da Primavera Árabe tem que se preparar para a frustração. É um destino traçado de decepção, assim como o foi a maneira como terminou o entusiasmo, que nos anos 80, levou o Aiatolá Khomeini a liderar a revolução iraniana do exterior contra o Xá Reza Pahlev. Quando pousou em Teerã no avião da Air France, cedido pelo governo francês a velha esperança instalou o Governo de Deus da República islâmica do Irã. Com o novo regime, a mais nova opressão e o completo obscurantismo teológico-militarista fortaleceram a sina que anda por lá até os dias de hoje.

Líderes diminutos tornam-se emblemáticos quando tendem a ser implacáveis em suas opiniões e ações. E sabem como ninguém manipular os sentimentos de revolta que brotam em Túnis, Damasco, Trípoli, Cairo, Sanaa, Teerã, Manama, Amã. Só que agora, como o mundo está mais multipolar, os velhos ditadores não estão sabendo a quem vincular sua lealdade. Há, ainda, felizmente, para a maioria da opinião pública mundial, a aceitação da idéia mais avançada da atualidade: de que o respeito aos Direitos Humanos deve prevalecer sobre os velhos conceitos de soberania nacional. Muitos governos familiares usam os nacionalismos tribais, o fundamentalismo religioso e as barbaridades que praticam para manter a região isolada e em crise permanente. A maneira como foram treinados pelos seus colonizadores, e a memória das recepções com distinção com que foram festejados quando receberam honras de chefes de Estado, os paralisa diante do nomadismo da multidão enfurecida. Alguns por mais de 40 anos desfilaram com suas famílias por feiras de armamentos, universidades, palácios. Aceitando de bom grado a companhia e o método de manipulação da moralidade, além de todos os mecanismos permanentes de reutilização da violência, aprendido com os ocidentais nos tempos da polarização Washington-Moscou.

Os chefes de Estado que renunciaram, caíram, fugiram ou foram executados não levaram consigo a tragédia que construíram em seus países. Pois os tiranos quando morrem, sem verem sepultada a tirania que os sustentava, permanecem como fantasmas do mal que fizeram aos seus povos. E a Primavera Árabe parece não ter forças para enterrar a devoção de adular déspotas e recusar o autoritarismo arraigado na região.

PAULO DELGADO, sociólogo, foi deputado federal.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *