Vinte anos depois…

Símbolo do mais consistente e longo período democrático da História brasileira, a Constituição de 1988 fez vinte anos sem saber bem seu destino. Adequada e harmonizada ao momento político, social e histórico da época, não foi convocada por poder arbitrário. E permitiu ao país, sete períodos presidenciais em vôo civil com controlada turbulência institucional. Mas não assegurou acumulação de energia capaz de elevar, de forma consistente, a autonomia e o progresso da nação.

Concebida para o predomínio da sociedade sobre o Estado, é hoje usada para regular a vida da sociedade. O que não está explícito é explicitado por leis delegadas infraconstitucionais. Que ultrapassam, todo dia, por medidas provisórias, meros atos administrativos, portarias, decretos, súmulas a reserva legal de poder e autoridade que todo cidadão pressupunha ter sob o manto da Constituição cidadã. Um barulho legiferante, verdadeiro enfrentamento, que não cessa de inovar na regulação, intimidação, fiscalização, documentação, como se não houvesse vida útil fora das leis orgânicas e da sede micro-regulatória dos governos.

O Ministério Público – Ministério do Público bem dizendo –, inovadora instituição, não percebe que perde sua autonomia constitucional quando quer mais do que exercer suas gigantescas funções de procurador da sociedade, guardião da justiça e da democracia. Se busca fazer-se essencial e tiver prerrogativas de poder, inunda o Estado e a sociedade com seu protagonismo, atraindo tudo para a sua órbita. Quer ter independência institucional, ser árbitro da legitimidade da lei e julgador do seu conteúdo, invadindo doutrinariamente a competência da vida civil e de outras instituições para também reconhecer, respeitar, conviver e defender seus direitos. Ao contrário de ser interpretado pela Constituição, passou a interpretá-la, produzindo uma competição aberta com os poderes da União que acabou por torná-lo, hoje, membro e parte da sua hierarquia.

Instrumento para pôr o Estado a serviço da sociedade, a Constituição não começa com a definição dos poderes e sua arquitetura. Começa dizendo que os objetivos e princípios constitucionais e do Estado devem estar a serviço dos objetivos sociais, individuais, econômicos e culturais da sociedade. Assim, não deveria corresponder ao sentido do texto a convicção generalizada de que a ordem só pode ser ditada pela autoridade, quando, na verdade , ela é um atributo organizatório, fundada na autonomia do indivíduo que, com liberdade, organiza-se, trabalha, prospera, cumpre seus deveres.

Prevendo sua própria revisão em cinco anos, a Constituição abriu-se a uma agenda constituinte permanente. Governar é revisar a Constituição. Isso porque ela é vista como um programa de governo, feito por coalizões políticas do passado recente, e não a síntese da visão universal dos brasileiros sobre o país.

Assim a Constituição grudou na sociedade, nada sendo exterior a ela. Movida por uma certa fantasia social, é um texto da arte de vitral. De caligrafia trêmula, expressão de um tempo de histeria social e política. Mosaico de interesses diversos e conflitantes, consagrou, todavia, um modelo único de cidadão, ativista, engajado, mobilizado. Afirmou o direito à diferença mais do que o direito à igualdade. Introduziu tantos intermediários entre o povo e o Estado que levou o país à sobrepolitização de tudo. Só pela política a nação, a natureza, a cultura, a economia se expressam. Sugere e estimula a correlação direta entre a cidadania e o Estado sem espaço para o autêntico pluralismo e a autonomia da vida social.

Nada, no entanto, foi escrito com enfado ou falta de afeição pelo Brasil e pelo mundo. É preciso, no entanto, não vê-la mais polarizada. E cumpri-la pela ótica da sociedade emancipada, como foi concebida.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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