Propaganda ou notícia

Os bons políticos são como os bons jornalistas: têm seu maior teste de caráter quando decidem não chutar a cabeça dos que já estão no chão. Pois quem busca a verdade não precisa triunfar sobre ela. Mas o código de desmascaramento da realidade sob o qual se orienta a imprensa está mais próximo da democracia do que os códigos de mascaramento da política.

Noticiar é informar de forma objetiva, imparcial e independente, e assim também contribuir para deter ou mudar o rumo das coisas. Há um quê de missão na atividade jornalística que concorre com a política. É aí que a política se irrita e passa a ver como partidária a imprensa. Não é por outro motivo que a cobertura de guerra – onde a política fracassa e muitas nações colocam seus destinos e sua honra – ainda é a fonte das grandes reportagens e do grande repórter.

Quando faltam relevantes questões políticas imediatas – fruto até da evolução da sociedade – a verdade é tratada como o êxito de uma idéia de quem detém um produto, o poder ou a autoridade. Fato constatado tanto na relação entre imprensa e publicidade existente nas empresas de comunicação quanto no elo entre política e propaganda que prospera nos palácios. Na indústria da política, a mercadoria nem sempre é a verdade e a justiça, mas a uniformização da opinião sobre as duas.

Em um mundo de superabundância na concorrência das mercadorias, muitas vezes a profusão da publicidade é inversamente proporcional à qualidade dos produtos anunciados. Há mais propaganda de carro ruim do que de bom, não por acaso. Mas ali, a defesa dos consumidores, cada vez mais cidadãos com direitos, cuida de se autoregular e deter a propaganda enganosa, abusiva, desleal, bem como a formação de monopólios ou práticas de dumping, em busca de uma superioridade moral para a velha e necessária atividade comercial.

Ouso mesmo vislumbrar a abertura democrática na China vindo mais pelas mãos da concorrência comercial do que pelo fim da censura à imprensa. Até agora, coisa impossível em Cuba que não tem nenhuma das duas. No Brasil as leis comerciais estão mais avançadas do que as leis políticas: se posso devolver uma geladeira com defeito porque não posso devolver um político estragado?

O princípio organizatório da troca invadiu a política quando cresceu a dissociação entre política e ideal e o exercício do poder perdeu a universalidade, transformando-se em administração de pressões e recursos para aliados. Com isso, alargou a distância entre a opinião pública, os partidos e a gestão do Estado, de um lado, e as organizações civis independentes, do outro. Por instinto de liberdade e autonomia, e fiel ao seu código fonte, aumentou ao mesmo tempo a afinidade entre a imprensa e a sociedade civil, suas redes. Isso acendeu um alerta nos agentes do Estado, sempre desejosos de capturar e colonizar a sociedade. Primeiro nasceram as mídias dos poderes em profusão e auto elogio. Mas o poder é insaciável – em qualquer tempo e lugar – e o que se viu a partir de então foi o avanço da cooptação das Ongs e o enfrentamento com a imprensa, agravando o provincianismo, a intervenção reguladora sobre todas esferas e a defesa estridente de interesses específicos; deu na democratização fragmentada por agendas grupais e não-negociáveis, o que nem sempre significa melhoria da democracia, combate à desigualdade, diminuição da violência.

O melhor da liberdade são seus excessos, desde que mediados pela criação de regras de autoregulação e responsabilização, considerando a lógica da ordem jurídica e o interesse de cidadãos livres. Mas dispensada a ordem unida que vem do Estado. Pois o estatal pela sua força e influência, precisa também ser regulado. É preciso rejeitar a idéia de uma sociedade homogênea e continuar a avançar pelas contradições e complexidades, especialmente em países de democracia tardia como a nossa.

Se a notícia constrói ou desconstrói poderes essa é a medida mesma da liberdade da imprensa e da qualidade da democracia – sempre oposta ao poder e sua indústria da euforia movimentada segundo conveniências políticas.

Paulo Delgado, deputado federal pelo PT-MG

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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