O Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva

Gostaria de agradecer os PS em nome do Presidente do PT, Partido dos Trabalhadores do Brasil, José Genoíno, pelo convite para participar deste seminário internacional e gostaria de trazer os abraços dos inscritos no meu partido, que é o maior, o mais institucionalizado e organizado (provavelmente de toda a América Latina) embora, contraditoriamente, não seja o partido que tenha maior número de inscritos no Brasil. Porém, nossa força institucional e social não corresponde ao número de inscritos ! Os partidos de esquerda ainda não conseguem atrair a massa do povo às suas fileiras. Nosso país tem 170 milhões de habitantes e o PT tem 700 mil inscritos. Os grandes partidos de direita têm milhões de inscritos. Chegamos ao governo após numerosas tentativas sozinhos ou com uma coalisão de esquerda, mas só conseguimos ganhar quando fomos além da esquerda, isto é, quando ampliamos nossa base social e nossos interlocutores no sistema político brasileiro, reduzindo as áreas de atrito não necessárias.

O PT cresceu com as derrotas e hoje governa o Brasil numa situação de “coabitação”. Temos a maioria política que se formou no ato da eleição do Presidente Lula, no entanto, o eleitorado brasileiro não nos deu a maioria parlamentar. Somos obrigados a gerenciar um processo de contínua formação e defesa da maioria parlamentar e isso é extremamente complicado em países como o nosso, de tradição presidencialista. Nesse sistema de governo, não há mecanismos democráticos eficazes para a resolução das crises políticas, pois o Parlamento tem um mandato estável. Então, uma forte presença conservadora e personalista acaba por se tornar um fator de estabilidade política para o governo.

Gostaria agora de abordar a questão que o Senador Ricardo Nuñez já apontou como sendo de interesse de quase toda a América Latina e que surgiu nos anos 90 como fenômeno mundial, isto é, a idéia de uma gênese, para nossos países, baseada sobre três ilusões: privatização total, ampla terceirização e abertura indiscriminada para o mercado internacional. Dessa maneira pensava-se que a estabilidade e o crescimento econômicos teriam surgido como natural conseqüência. O quadro a posteriori revelou o fracasso dessa ilusão, pois a abertura para o mercado internacional não significou investimentos produtivos a largo prazo, e não se obteve uma maior eficiência do Estado com as privatizações e as terceirizações . Ao contrário, nos setores transferidos ou privatizados, a redução do Estado os tornou ainda mais ineficientes em vista da degradação da qualificação dos funcionários públicos e da diminuição dos controles.

Hoje nosso desafio é comum a toda a América Latina: oferecemos ao mundo, ao instável e unipolar mundo de hoje, a vantagem de sermos a única área “desnuclearizada” do planeta, onde a militarização da política foi substituída pela prática democrática e por uma reduzida atitude hostil em relação às outras regiões do mundo. É claro que não nos empenhamos na corrida armamentista e nem desejamos fazê-la. Ao contrário, o Brasil tem dez vizinhos e não há guerras nas suas fronteiras desde mais de cem anos. As ditaduras regrediram e deixaram espaço para sistemas democráticos que se incorporaram ao processo civil e podemos dizer que hoje somos um continente com predominância pacifista. Existe, no entanto, certo constrangimento no que diz respeito à nossa posição multilateral pela escassa influência que ainda temos na configuração do sistema internacional, uma questão que a política exterior do Presidente Lula tem muito presente. A reforma do sistema internacional, do sistema de Bretton Woods e das Nações Unidas deve incluir o ponto de vista da América Latina, como continente fundamental na estabilidade do sistema internacional. Uma conferencia como a de hoje revela a importância que essa questão tem para os partidos da esquerda e que tem de alcançar nossos parlamentos, assim como toda a sociedade. Temos a expectativa de que a Europa não nos enxergue apenas como “Nova Companhia das Índias Orientais” e não queira transformar-nos num continente de commodities e de montagem. Gostaríamos que fossem reconhecidos os esforços de eficiência, feitos no Brasil, na Argentina e no Chile, no setor agrícola ou na área industrial. Os italianos conhecem a importância da filial brasileira para a eficácia da Fiat a nível mundial, assim como os franceses reconhecem a alta eficiência e a tecnologia industrial da Embraer, associada à Dassault, que hoje transporta com suas aeronaves milhares de cidadãos do mundo inteiro. Em várias outras áreas de competição comercial, a América Latina tem condições de afrontar o mercado internacional desde que o sistema do WTO, seus preços e suas quotas garantam a competitividade, fazendo com que se tornem harmônicos os interesses das diversas regiões do mundo com novas associações produtivas e criativas, reduzindo o protecionismo do sistema econômico internacional. Sobretudo aquele que é praticado aqui, no velho continente, e aquele dos Estados Unidos. Hoje o desafio da esquerda mundial é o de romper essa dinâmica espontânea da globalização que produziu grandes desastres no sistema internacional e que diluiu a cultura local em muitas áreas, diminuindo a influência das economias nacionais.

A Itália tem muito para nos ensinar e nos sentimos honrados por sermos escutados por uma liderança como D’Alema e Fassino. A tradição italiana, do país e da sua esquerda, com lideranças e teóricos inesquecíveis como Gramsci, Togliatti, Berlinguer e Bobbio possui uma energia vital para a renovação da Internacional Socialista, que muito entusiasma o PT. Temos confiança numa Internacional Socialista renovada e guiada por idéias de solidariedade, de esquerda democrática, guiada por uma agenda social e internacional que preserve as nações e suas culturas e que faça do progresso e do desenvolvimento a forma de inclusão e do avanço da civilidade no mundo. Desejamos a integração entre os nossos países sem sufocar as boas administrações locais ou abolir o Estado Nacional. Nosso trabalho político no Brasil tenta romper essa dinâmica espontânea da globalização, reforçando o empenho com a política democrática e com a diminuição da pobreza e da miséria. Nesses quinze meses de Governo, não obtivemos, é evidente, câmbios no controle do poder do Brasil e encontramos muitas dificuldades para operar substanciais mudanças na política social. Uma das razões é que tudo no nosso país, assim como na América Latina, é submetido à discussão e é objeto de polêmicas. Essa é a maior dificuldade que encontramos e que foi agravada pela forte experiência de partido de oposição, pois isso sempre fomos.

Os confrontos eleitorais tendem a se tornar rotineiros na América Latina, superando finalmente os confrontos militares. Existe, no entanto, uma grande insegurança urbana, causada pelo aumento da criminalidade, coisa muito diferente da brutalidade dos fenômenos terroristas como o que ocorreu hoje em Madri.

O risco complementar que estamos correndo é parecido ao que corre a Europa, porque está relacionado à maneira como os Estados Unidos enfrentam o terrorismo, mundializando seus efeitos e suas ações. Por isso, a reforma do sistema das Nações Unidas diz respeito à vida do cidadão comum, sobretudo nos continentes pobres ou que se tornaram pobres pela competição internacional. Hoje diz respeito a todos os cidadãos do mundo, ameaçados pela idéia da “guerra preventiva”, do mundo unipolar e da ONU unilateral. Foram essas distorções que fizeram uma nova vítima, o grande funcionário internacional, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que tinha um mandato temporário da ONU no Iraque. Essa não é a regra, pois vimos a ONU, com o próprio Sérgio, ajudar na criação do mais novo país do mundo, o Timor Leste. No entanto, lá onde as Nações Unidas se confundem com o agressor, elas não têm autoridade e são incapazes de resolver os problemas das áreas em conflito.

A luta do PT no interior do Governo do Brasil diz respeito à ampliação das áreas de igualdade e à diminuição da precariedade na qual vive a maior parte da nossa população que, muitas vezes, não consegue viver na legalidade, apesar de estar formada por cidadãos honestos. É igualmente frágil a rede de proteção social dos brasileiros, em forte competição burocrática para obter assistência social nos três níveis de poder do Estado (federal, estatal e municipal). A burocracia não tem inimigos no nosso continente pois é ela mesma que assegura o silêncio da justiça e a falsa honestidade contável das nossas elites. Simplificar a vida do povo já seria uma revolução que romperia com a tradição das regiões, nas quais continua sendo muito caro ser pobre e muito econômico ser rico. Nosso governo começou a sua primeira grande investida quando chegou ao poder, ou seja, aquela de combater a miséria absoluta do povo, racionalizando os programas sociais. Levou para frente a reforma tributária e fiscal para simplificar a vida dos cidadãos e das pequenas e médias empresas, não atingidas ainda pelo processo do desenvolvimento. Fizemos a reforma do sistema da aposentadoria, eliminando algumas injustiças presentes no sistema brasileiro da previdência, fortemente concentrado e que privilegiava um único setor da população. Dessa forma, criamos a possibilidade de incluir no sistema da previdência 40 milhões de brasileiros nos próximos 10 anos. A vitória não está garantida porque a maioria precária que temos no Senado torna imponderável o destino das reformas. Nosso grande desafio tem, no entanto, um significado político-antropológico, porque temos que mudar os hábitos políticos e trabalhar para aumentar a duração dos consensos sociais, reconstruindo a idéia de que existem políticas de Estado e que essas produzem benefícios para a maioria. Hoje, desgraçadamente, somente os acordos para a proteção dos investimentos e os contratos de natureza econômica desfrutam desse senso comum. O empreendedor europeu tem que se empenhar para que o consenso na América Latina seja estável, não somente os contratos econômicos mas, sobretudo, o contrato democrático, com as forças trabalhando para a inclusão social. Temos uma grande sociedade de massa e uma sólida presença de meios de comunicação, com o cidadão cada dia mais independente, livre e reivindicador. Isso é um patrimônio que a esquerda deve cultivar e ampliar constantemente, aumentando sua capacidade de construir o consenso, podendo reconhecer quando não é possível obtê-lo. Queremos, também, a modernização da justiça e a consolidação, no nosso país, das ações afirmativas que garantem os direitos e aumentam as vantagens dos mais pobres.

Em resumo, temos muitas coisas para aprender da Itália, da história dos DS e dos outros partidos de esquerda desse país. No entanto, podemos dizer que a América Latina, e sobretudo o Brasil, necessitam fortemente de unidade política. Quanto menores forem as divisões no interior da esquerda, os inúteis conflitos, as querelas sempre superáveis, tão maiores serão as possibilidades de progresso da sociedade. Acreditamos que nossa sociedade espera que a esquerda possa ser unida e que confira uma dimensão mais alta à luta política. Caso contrário, a política se tornará inútil aos olhos do cidadão e perderá a capacidade de devolver em esperança aquilo que o povo lhe concede em confiança.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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