Palestra do deputado Paulo Delgado em seminário realizado pelo Ministério da Defesa

Palestra do deputado Paulo Delgado em seminário realizado pelo Ministério da Defesa, no Rio de Janeiro, com participação do embaixador José Viegas, do Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, e do Ministro das Relações Exteriores, embaixador Celso Amorim.

Bom dia a todos. Sem pretender prever ou prescrever, por limitação profissional, o caminho que devemos seguir nesta área de Segurança e Defesa, valho-me da velha formula de Augusto Conte que assegurava que o prognóstico e as previsões são parte do conhecimento tanto quanto as descrições e os diagnósticos. Arriscarei com elementos da sociologia e da política, minha formação original, apontar tendências e sugerir traços da fisionomia que poderemos ter ou querer observar no próximo período.

Mas é como membro titular da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, há oito anos, que considero razoável e oportuno falar sobre o tema para o que , desde já, agradeço o convite e a distinção que recebo do Sr. Ministro de Estado da Defesa, Embaixador José Viegas.

I

Assim como nenhuma virtude é natural, ao ser adquirida e praticada não traz consigo sua própria recompensa. Especialmente nas relações políticas, econômicas e entre as nações. Mais ainda hoje, onde a soberania partilhada e interdependente configura um novo poder sem rosto – um cão que não ladra à noite – para o velho Estado Nação dialogar inevitável e permanentemente.

O elevado significado da baixa animosidade do nosso povo entre si na vida em sociedade e da tradição constitucional pacifista que praticamos na esfera internacional, não assegura por si só êxito estratégico ao país como nação. Se, segundo o IBGE, o século XX nos projetou como nação em crescimento e empreendedora, os últimos vinte anos são de preocupante estagnação e mesmo desmodernização. Pensar, pois, Segurança e Defesa como instrumentos mobilizáveis pelo poder e a autoridade do estado para assegurar e respaldar os objetivos políticos e sociais do nosso país é dever de todos, e incontornável responsabilidade do Congresso Nacional na viabilização institucional, orçamentária e fiscalizadora das metas planejadas e requeridas. As injunções sócio – econômico-jurídico-político internas, mas também regionais e mundiais, apontam para a reestruturação, atualização e em alguns setores reinvenção das fontes de poder e dos objetivos nacionais para consolidar e continuar a forjar nossa personalidade interna (política, econômica, social, cultural) e internacional (diplomática e estratégica).

A gestão democrática dos assuntos públicos internos não se faz, eficazmente, nesta área da Segurança e Defesa, sem clara noção por parte da autoridade governamental do alcance e da definição do uso da força – efetividade, comando, emprego e aplicação – em situações de rotina preventiva ou repressiva. Da mesma forma, na área externa, mesmo na invislumbrável hipótese de emprego do poder militar, são os limites constitucionais e os derivados de tratados internacionais dos quais somos signatários que redigem as notas e a ação diplomática no contexto da paz ou da guerra. Não é, pois, coincidência o fato de que as duas carreiras de Estado com quadros mais altamente profissionais do país sejam a militar e a diplomática. Como também, é sempre bom lembrar, que a consolidação jurídica e pacífica de nossas fronteiras – nos legando um mapa de país de escala continental – fruto da destacada atuação do Barão do Rio Branco, correspondeu ao período de reconhecida projeção do poder naval brasileiro. Notas diplomáticas altivas e efetivos militares mobilizáveis são elementos politicamente vinculados e intercambiáveis nas relações internacionais de um país soberano. É a ajustada política de defesa que respalda o vigor da nota diplomática nos momentos cruciais de uma nação. A partir daí o Interno (o nacional) e o Externo (o mundial) se equacionou na compreensão política do nosso povo projetando os desafios do desenvolvimento nacional em primeiro plano. Requalificou, por sua vez, a noção de soberania na ação diplomática em defesa de interesses comerciais e econômicos: ao tomar empréstimo, por exemplo, um Estado não exerce soberania mas um mero ato de direito, privado ou público, não cabendo mais, como nas guerras de Reis, usar os exércitos para a cobrança de dívidas. Nossos vizinhos não são nossos problemas mas parte de nossa riqueza pelo potencial de cooperação que representam como os debates e ações concretas em direção a integração física continental estão a revelar. A defesa da costa é muito mais hoje a do valor econômico do mar continental e poder real sobre as duzentas milhas.

Instrumentos e ferramentas legais e legítimos das ações políticas e administrativas do Estado moderno, tanto as Polícias (Sistema de Segurança da Sociedade, Vigilância e Ordem Pública) como as Forças Armadas (Sistema de Segurança do Estado, Dissuasão e Defesa do País) requerem permanente atualização e adequação da natureza de suas doutrinas e condições de operação, mobilização e prontidão à análise da realidade nacional e internacional.

O potencial brasileiro para se realizar plenamente como nação alimenta e se alimenta da consolidação da democracia, da majoritária presença de nosso povo nas regiões urbanas; do parque industrial complexo, moderno e diversificado; da inovação científica e tecnológica; da liberdade de expressão; do combate à xclusão social; da universalização dos direitos da cidadania e influência do cidadão na estruturação do Estado, do Governo e das políticas nacionais; do crescente alinhamento internacional através da internalização de leis, tratados, comportamentos em todas as áreas e assuntos que asseguram ou propugnam por liberdade econômica, prevalência dos direitos individuais, atenção humanitária, justiça, qualidade de vida, maior esperança para a juventude. Tudo isto em permanente sintonia com a opinião pública mesmo que, exagerada às vezes, tenda a transformar qualquer desejo ou mania em direito a ser garantido pelo Estado.

II

Segurança e Defesa são interdependentes e abrangem as razões e políticas do estado democrático tanto interna como externamente. Contém e legitima uma das mais importantes prerrogativas da autoridade pública que é o monopólio legítimo e legal do uso da força para manter a ordem democrática. Segurança é o dever do estado de criar condições para que o indivíduo possa viver em comunidade livre de ameaças, em liberdade e bem estar; é um estado em que a satisfação de necessidade e desejo está garantida pelo caráter daquilo que é firme ou daquele com quem se pode contar ou a quem se pode confiar inteiramente; a tranqüilidade que dela resulta é a situação em que não há nada a temer. Defesa é meio ou método de proteção; capacidade de resistir a ataque; equipamento ou estrutura de proteção; complexo industrial que autoriza e supervisiona a produção e aquisição de armamentos e demais recursos militares afins.

É a compreensão partilhada destes dois conceitos por todos que fortalece a democracia como única alternativa não violenta para expressar descontentamentos toleráveis nas sociedades complexas. Isto porque para ser tolerante é preciso antes saber o que é intolerável. E, há hoje, cada vez mais coisas fora do controle, até mesmo da superpotência atual. Tais como: a estabilidade financeira internacional; controle de doenças infecciosas; criminalidade cibernética; terrorismo; tráfico de drogas, pessoas e órgãos; lavagem de dinheiro; biopirataria; etc. . Isto contribui para a construção de um tipo de mal radical que é o do crime sem castigo que engrossa as estatísticas dos fatores que estimulam a violência e o desprezo pelo poder constituído, aumentando a demanda por Segurança e Defesa. Combinados com outros fatores que contribuem para a erosão do poder legítimo e aumentam a taxa do imponderável entre as nações podemos citar o alto aperfeiçoamento tecnológico dos meios de destruição cada vez mais precisos e seletivos; o uso político da guerra e os sinais de esgotamento do sistema das Nações Unidas; violação de fronteiras de estados soberanos; eclosão de guerras regionais; aumento da disponibilidade de armamentos sofisticados para conflitos locais e grupos independentes ou mercenários; tendência mundial a abolir o recrutamento geral e o alistamento compulsório dos jovens, abrindo perspectivas para criação e emprego de forças armadas privadas em guerras futuras; desintegração do poder estatal em algumas regiões do mundo reforçado pelo aumento portentoso da riqueza privada concentrada em poucos indivíduos ou empresas; o desequilíbrio do desenvolvimento econômico e social; crescimento dos negócios e patrimônios ilegais a partir da movimentação de bilhões de dólares anuais por uma economia criminosa, globalizada, que vai do tráfico de drogas ao roubo de automóveis. Há mesmo um mega sistema industrial e empresarial sem cabeça ou responsabilidade social que maneja negócios transnacionais superiores ao PIB de uma centena de países e com forte poder de pressão política. Há, ainda, uma nova diáspora mundial de refugiados e extra-comunitários que batem as portas de todos os países com conseqüências de toda ordem, etc. .

A violência moderna, presente nesta agenda negativa pode levar, dentre outras coisas a negar, desprezar, contornar o poder e a autoridade democrática contribuindo para a sua desintegração. Seu principal sinal hoje é o declínio da política como instrumento confiável de transformação social. Para os que chegam, quem sabe, a reinvenção da escola como instrumento de educação coletiva inexplicavelmente abandonado pelo Estado, poderá tornar possível canalizar sua agressividade natural para ações que visem o bem comum, rompendo o ciclo onde a socialização da maioria dos brasileiros se dê fora das instituições de caráter público ou comunitário.

A violência hoje é a mais flagrante manifestação de poder em competição com o estado democrático com variados níveis de hostilidade, efetividade, comando e aplicação. Estimulada por fatores externos e internos a violência tem que ser confrontada e combatida por valores nacionalmente aceitos e por uma política do bem comum que amplie as áreas de igualdade entre todos os brasileiros. O êxito dos estados modernos se tornou possível pelo aumento dos níveis de ordem pública; desarmamento das populações; monopólio dos meios de coerção e vigilância; lealdade e subordinação voluntária do cidadão ao estado; inteligência e investigação para o bem comum; igualdade de todos perante a lei; abordagem adequada do infrator e do delito.

A violência é uma forma de organização social ilegal que desorganiza a rotina diária do cidadão comum, ferindo seus direitos mais elementares. Não está associada a pobreza ou ao nível de riqueza da sociedade. Mas é inevitável lembrar que a urbanização da pobreza com a precariedade expandida das condições de moradia, trabalho, lazer e educação de um lado e as fortalezas medievais com sua vigilância privada de outro, fotografam o pior dos mundos para os dois lados da concentração de renda. Ela funciona como um sistema: é provedora de empregos; expulsa ou corrompe os representantes locais do poder público; implanta na sociedade verdadeira cultura da extorsão onde o custo do descumprimento da lei é mais baixo do que seus benefícios. Atravessa fronteiras sem cerimônia, circula pelo espaço aéreo, entra em casa sem bater pelos meios de comunicação. Dissociada do sofrimento pela sua divulgação banal, glamourosa e espetacular a violência familiariza a sociedade com a injustiça, diminuindo as reações ao sofrimento e crueldade, aumentando a apatia social e a decepção com a justiça.

Mas felizmente, o presente, não é o destino final do nosso mundo.

III

O ciclo da ação policial que inclui a prevenção, combate, repressão, investigação, perícia, não justifica mais a ação reativa, inercial e fragmentária, diante de crimes previsíveis e padronizados que podem ser contidos com treinamento, serviços de inteligência, racionalidade e tecnologia (vigilância e análise de microvestígios). Da mesma forma, a complexa organização de uma tropa exige comando, controle, comunicações, inteligência cada vez mais combinados e integrados entre as diferentes armas (equipamentos) e Forças com claras repercussões econômicas, tecnológicas e de benefícios subsidiários para a sociedade, especialmente em tempo de paz.

Sob a pressão do crescimento demográfico e econômico o Brasil dispõe e valoriza seus recursos naturais que o permite integrar-se ao cenário internacional como nação competitiva. A exploração destes recursos mobiliza capitais consideráveis, que vão desde ao bilhão de dólares de uma plataforma de extração petrolífera ou de uma central hidrelétrica, aos outros bilhões dos reatores nucleares. Sem falar dos valores que se agregam produzindo efeitos multiplicadores de riquezas nos programas relativos a essas áreas do País. Além da sua mera representação territorial ou marítima esses recursos são alvos estratégicos prioritários e devem ser protegidos por meios apropriados, além das companhias de seguro.

O escudo verde representado pela Amazônia produz no Brasil a mesma ilusão de isolamento e proteção que os Oceanos produziram muitos anos nos Estados Unidos. Hoje se vê como o Sivam veio tarde e a soberania da fronteira só se assegura como soberania da região. Em geopolítica os escudos viram alvos e as ameaças territoriais transformam-se em ameaças econômicas.

A evolução das tecnologias, de origem ou natureza militar, terrestre, naval, aérea e espacial, notadamente as de uso dual, combinados com as limitações econômicas, criaram o ambiente de cooperação que tornam a sociedade parceira essencial do desenvolvimento e a execução dos programas de Segurança e Defesa, sob controle e supervisão do Estado – com determinação, continuidade e criatividade orçamentária. A arquitetura da modernização estratégica e institucional para qualificar em nível mais alto as necessidades crescentes de Segurança e Defesa é dada pela estabilidade democrática e o ambiente geoestratégico em que deve continuar operando a autoridade política brasileira. A política industrial de Defesa é essencial para que a política de Defesa se distinga de uma mera política de Segurança interna mas, também, para que retome a boa tradição brasileira de combinar mobilização industrial, inovação tecnológica, ensino e pesquisa, que produziram nas Forças Armadas uma das mais respeitadas, sólidas, informada e diversificada inteligência industrial militar do mundo.

O desafio de possibilitar – permitam-me usar a expressão com conotação econômica – a prontidão estrutural, sustentada por uma indústria de Defesa ampla e competitiva, repercute positivamente nos indicadores econômicos do País e seu funcionamento agrega substância a política externa ao ampliar a integração continental pela participação na competição regional por manutenção, modernização e reequipamento das Forças Armadas e Policiais dos nossos vizinhos e interlocutores de outros continentes. Tal fato não somente contribui para consolidar nossa confiança recíproca, convergindo para uma maior compatibilização de equipamentos – armas conhecidas e partilhadas suplantam compreensão hostil de sua aquisição – assim como podemos vislumbrar zonas de produção público-privada que fomentem o intercâmbio comercial e a cooperação de inspiração e critérios multilaterais. A política de Segurança e Defesa não como corolário de projeção de força mas como corolário do desenvolvimento econômico mais geral da sociedade.

IV

Nada do que se discute ou propõe dispensa a contribuição de homens e mulheres e nesta área especialmente, pois os que se dedicam a Segurança e Defesa desenvolvem a virtude essencial que é o controle permanente de si mesmo para servir ao país e ao seu povo.

Aos que atuam nesta área, dedico estas considerações.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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