Outono alemão

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Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 1º de outubro de 2017.

A primavera no hemisfério sul, que traz humidade a Brasília é o começo do outono no hemisfério norte, que trouxe preocupação a Berlim. E delatou o gosto dos alemães pela falta de humildade. Estações do ano, equilíbrio superlativo que Deus impos ao mundo na forma como a terra se comporta no universo. A política tem mais borbulhas do que o clima e costuma ser manejada pelo destino. Se alguém chega ao poder é porque havia algo….

Ocorre também de termos acontecimentos menos definitivos, impostos por pessoas de periodicidade conhecida. As eleições, essa coisa fulgurante, mas imóvel, são exemplo disso. Reparem que até as ditaduras fazem questão de serem eleitas. A despeito do longo rol de falhas na constituição de governantes por vias democráticas “foi eleito” é a expressão que relega à completa suspeição criticar o processo.  Não está superado o vaticínio que Winston Churchill incrustou na coroa democrática. “A democracia é o pior sistema de governo fora todos os demais testados até aqui.” Mesmo que a rosa que brota da urna logo tenha secado.

A grande vantagem do regime democrático é sua plasticidade. O necessário é que pessoas bem-intencionadas apostem nele. Dediquem-se a molda-lo de acordo com suas crenças e com as revoluções e evoluções do planeta.

Domingo passado ocorreu a eleição nacional alemã. Angela Merkel, a mais longeva mandatária no grupo dos vinte países mais ricos do mundo, assegurou sua permanência à frente do país. Sua recondução ao cargo é uma formidável aula sobre a volta da memória política popular ao ponto de admiração inicial. Merkel não forçou a própria natureza e casou de novo com o mesmo dote.  Assim permitiu seu país fazer emergir os diversos aspectos que constituem a realidade humana de grupos internos. Indigestos penetras apareceram. Melhor assim, o mel do parlamento é o soro antiofídico do radical.

A magra vitória de seu partido, a União Democrata-Cristã (CDU), em setembro de 2005 desenrolou-se na formação, um mês depois, de uma grande coalizão que ungiu Merkel a primeira mulher chanceler da Alemanha. Era também a primeira vez que alguém nascido na antiga Alemanha Oriental assumia o controle da nação unificada. De lá para cá doze tumultuados anos se passaram e só Merkel não caiu na Europa.

“Ironicamente, a ascendência filosófica da democracia liberal é acompanhada por crescente descontentamento com suas operações práticas”, argumentava em 1993, Robert Putnam, no principal estudo sobre as condições para sustentar a experiência democrática. O livro, lançado no Brasil com o título “Comunidade e Democracia”, traz uma ampla e sensível análise da experiência italiana a partir de 1970 com a criação de governos regionais. A oportunidade única do experimento natural foi abraçada por Putnam, que montou uma equipe de pesquisadores para observar, na prática, as características que faziam algumas experiências funcionarem melhor do que as outras.

O que reconduz Merkel ao cargo é em grande parte fruto da superior solidez econômica do país. Mas tal advém, por sua vez, do forte capital social, para usar o conceito-síntese de Putnam, que a Alemanha criou em suas comunidades, organizações e instituições. O mercado alemão é um primor a favor dos alemães. E o Bundestag, o parlamento que organiza a vida do país, tem mais ação do que discurso. Merkel segue se oferecendo como a melhor síntese ao abrir mão de ser uma líder de grandes ideias, para se manter como servidora do equilíbrio sobre o qual a Alemanha se ergueu, visando mais qualidade de vida do que poder.

O problema é que as operações práticas da democracia estão lerdas mundo afora fazendo pressão sobre o equilíbrio alemão. A Alemanha erra ao imaginar que a miséria do outro não tem valor. Seguirá errando ao achar que se salvará sozinha. Os problemas do mundo não estão contidos nas fronteiras dos países. Igualmente, o difícil exercício da liderança equilibrada não pode ser evitado em um mundo em que desequilibrados egoístas se mantêm em acintosa disposição para incendiar o mundo em causa própria.

Isso de ir se desmoronando, agarrada ao poder por medo de eventuais sucessores de rostos duvidosos é, nos tempos atuais, o equívoco que alimenta a ascensão dos infortunados, os sem responsabilidade que empolgam o povo alienado. E neste quarto governo, sabe Merkel, essa raiz amarga da Alemanha, que governará não pela força que tem, mas porque assim foi permitido pela raiz doce dos compreensivos.

O outono alemão é lindo, com festas comunitárias de vinho, cerveja e cultura. Mas, na última década, a política tira do povo a respiração, mais do que o deixa satisfeito.

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PAULO DELGADO é Sociólogo.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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