Conferência do Deputado Paulo Delgado na IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial, que ocorre entre os dias 27 e 30 de Junho de 2010 em Brasília

Conferência do Deputado Paulo Delgado na IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial

Direitos Humanos e Cidadania como Desafio Ético Intersetorial.

Bom dia a todos, Senhoras e Senhores. Permitam-me iniciar lembrando dúvida clássica sobre o sentido da vida: o mundo é digno de riso ou de lágrima? Padre Antonio Vieira interpretando lenda grega que envolvia dois filósofos, decidia:
Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heráclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias; logo, maior razão tinha Heráclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria.
Uma lei fundadora. Não! Fundadora da lei é o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial e seus fundamentos: humanismo, ciência, técnica, comunidade, afeto, história. Era preciso continuar o trabalho de todos aqueles, profissionais e leigos, que alertas e sensíveis, buscavam reorientar a medicina moderna na direção que aponta para a unidade corpo-espírito e querer, assim, encontrar a origem, a fabricação das doenças orgânicas, físicas e mentais.
Não sou médico, psiquiatra, psicólogo, terapeuta, psicanalista, enfermeiro, assistente social, auxiliar de enfermagem ou gestor. Sou candidato a paciente e enlouquecido quero ser tratado num serviço aberto, o melhor do Caps.
Da Lei nº 10.216 de 2001 posso dizer o seguinte nessa hora, a partir do que ouço, leio, vejo, escrevo, acompanho e defendo todos esses anos em solidariedade aos que sofrem, trabalham e lutam pela abolição completa da solidão e do isolamento do doente mental brasileiro.
Cuidado. Como substantivo, adjetivo ou interjeição é zelo dos preocupados, esmero, precaução, advertência para o perigo, vigilância, dedicação, encargo, lida, proteção. Atenção, tomar conta, acolher. Cuidado é o princípio que norteia essa lei. Evoluir a clínica, fazer do intratável o tratável. É essencial o apoio social e familiar que influencie comportamentos, mude hábitos, confronte preconceitos, classificações, nosologia, catálogos de interdições. Dedicada a cidadãos enfermos vistos como sem vontade, liberdade, autonomia porque foram colhidos pelo mal de viver. Não é a doença mental que a lei questiona, mas a maneira de tratá-la.
A sociedade cria e recria normas para definir o que rejeita e consagra. Faz-se progressista na área de saúde mais por atitudes de bons profissionais, do que por atos de rotina médica. Assim, inscrever o doente mental na história da saúde pública é aumentar sua aceitação social, diminuir o estigma da periculosidade e incapacidade civil absoluta e contribui para elevar o padrão de civilidade da vida quotidiana.
Já é hora do parlamento brasileiro se movimentar outra vez e avançar na elaboração de leis correlatas, essenciais e inadiáveis, sobre a inimputabilidade e as medidas de segurança para o louco infrator.
A doença mental não é contagiosa, dispensa isolamento. Não pode ser compreendida como estritamente orgânica apaziguada só pela quimioterapia e os remédios. Não há necessidade da psiquiatria bio-médica se agarrar àfarmacologia para se fazer científica.
Mas é claro que é o avanço da medicina e dos medicamentos que permite a reinserção social, convivência, restituindo o indivíduo, sua alma e desejos, ao mundo dos vivos. O que não significa esquecer que muitas vezes água com açúcar dada com amor faz mais efeito do que remédio dado com indiferença.
A medicina não deve ser carceral para não ampliar a solidão moral do paciente como se sua doença criasse para ele um mundo do não direito. Para o humanismo sanitário a técnica sópode ser um instrumento da medicina se usada com respeito e bondade. Pois a expectativa de cura ou melhora que pertence ao corpo é bem menor do que a esperança que pertence à alma.
Acolhimento, tratamento precoce melhoram a evolução e a direção da doença. Agir antes do surto para não ferir, ferir-se, quebrar. Sintomas físicos, queixas, mal-estar, sempre foram indícios de várias enfermidades. Melhorar a escuta geral dos sintomas aparentemente sem importância dores de cabeça, tremores, dores abdominais, cansaço extremo, falta de ar, agravado pelo embrulho e o ruído da adolescência: álcool, droga, conflito de gerações, esquisitices, vazio existencial, impaciência com o diferente.
E estar sempre aberto para os novos paradigmas que se impõem diante da urgência que é compreender o fracasso das estruturas simbólicas dos jovens no mundo do crack . Qual o código cultural no qual se assenta a regulação da existência de tantas pessoas em tão pouco tempo? Droga que quebra a mãe pobre e não se regula mais pela economia dos signos, mas pela economia pura do mercado. Não adianta, pois, querer medicalizar problemas sociais e manipular a política pública para enfrentamento tão complexo.
O Ministério da Saúde deve continuar resistindo aos que querem se apropriar do Plano Nacional de Combate ao Crack para ressuscitar o manicômio.
A tradição brasileira de tutela sobre pessoas doentes, agravada pela sedação e o isolamento, está culturalmente arraigada e é especialmente grave nas áreas da Saude Mental, toxicomanias e alcoolismo. Mas a internação e o isolamento só encontram aceitação social se a sociedade não encontra os serviços descentralizados, comunitários, abertos com a mesma facilidade que encontra o mal que a desampara. É inaceitável, assim, usar o terror e o pânico para buscar legitimidade para a internação prolongada própria da obsoleta cultura manicomial. A instituição nova que criamos com a lei da reforma psiquiátrica não tem retorno e tem o nome do acolhimento, o tratamento em liberdade. Aí está nossa cidadela de solidariedade e cidadania: ver a dor dos outros como se fosse nossa própria dor. Sustentado por ações múltiplas e intersetoriais, mais adequadas a cultura mais rica e complexa da medicina da mente e das doenças de longo percurso.
Saúde não é ausência de doenças. É um estado geral de bem-estar físico, psíquico e social como bem define a Organização Mundial de Saúde. A doença não é um fracasso. É um evento na vida da pessoa que não cria para ela um estatuto de exilado em relação ao que é ou está normal. Se compareço a um serviço de saúde e não tenho amparo para minha dor doente é o serviço. A doença é um processo que exige observação tolerante, advertência, preservação de direitos. A internação é uma parte do tratamento, mas não seu sinônimo e o conceito de leito, nesse caso, não se harmoniza com a terapia adequada. A medicina da mente e suas galáxias tem que se abrir a uma certa imprecisão e passar a duvidar que cada comportamento corresponda a um medicamento. Há muita depressão e sociopatia na sociedade que é impaciente com os seus doentes, tanto quanto com crianças, mendigos, idosos, pobres, deficientes.
A sofisticação do diagnóstico é que relativiza a classificação da doença, eis o paradoxo atual. É preciso modéstia diante do sofrimento. Não é porque não sabe, mas porque sabe que a psiquiatria, psicanálise, psicologia e psicoterapia modernas, baseadas em valores humanos, psicopatologia da experiência, fundam a reforma psiquiátrica. A internação como privação da liberdade, monoterapia, só prevalece em serviços despreparados. Por isso devemos sempre estar atentos para evitar a ambulatorização dos CAPS, a genial e generosa instituição criada por Domingos Sávio do Nascimento.
Tudo isso porém estará incompleto se daí não brotar uma nova economia solidária capaz de incorporar, no rítmo e na sabedoria própria da saudável competição pela vida, o talento e o esforço dos egressos dos serviços e, assim, contribuir para aumentar a vantagem dos estão em desvantagem. Foi o que me fez apresentar a Lei das Cooperativas Sociais, Lei nº 9.867 de 1999, como forma de reinserção social pelo trabalho. E assim também devem ser vistas e usadas, o Beneficio da Prestação Continuada, Lei nº 10.708 de 2003, e o Programa de Volta para Casa, parte integrante do universo terapêutico que, ao criar instituições e serviços novos, contorna e conforma a Reforma Psiquiátrica.
O doente mental é também beneficiário do ambiente jurídico oriundo da Declaração Universal dos Diretos do Homem e do Cidadão, como qualquer outro paciente. Seu tratamento não é um ato cirúrgico desde que foi abolida a lobotomia. Só a avaliação permanente do tratamento livra a psiquiatria da ideologia. Não há sucesso médico-terapêutico sem afeto, cultura, história da doença, escuta do sofrimento, subjetividade. Como bem sabia e praticava Dra. Nise da Silveira, precursora da lei.
Como ainda não sabem – mas precisam ser conquistados para esse novo horizonte do saber e da justiça – muitos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público que com desabrida ousadia invadem o saber médico e sanitário, violam a integridade do indivíduo, protegidos pelo preconceito inconstitucional que é a tradição de tutela ousadia para a qual não teriam coragem em outras áreas da medicina – e imaginando proteger direitos decidem, por verdadeiras cartas régias, mandar internar os incômodos e, na prática , vão reconstruindo hospícios contra a lei. Assim provocam mais mal, imaginando fazer o bem.
Enfim, para aqueles que ameaçam a evolução do tratamento e buscam legitimidade para suas críticas atravessando com desrespeito os fundamentos humanistas e técnicos da lei, quem sabe assim os tranquilizo:
Se eu soubesse de alguma coisa útil à minha nação que fosse danosa a uma a outra, eu não a proporia, porque sou homem antes de ser nacional ou ainda porque sou necessariamente homem, não sendo nacional senão por acaso. Se soubesse de alguma coisa que me fosse útil e prejudicial à minha família, meu espírito a rejeitaria. Se soubesse que alguma coisa que fosse útil à minha família e que não o fosse à minha pátria, buscaria esquecê-la. Se soubesse de alguma coisa que fosse útil à minha pátria e que fosse prejudicial ao meu continente ou que fosse útil ao meu continente e prejudicial ao gênero humano, eu a veria como um crime. (Montesquieu, O Espírito das Leis).
Uma coisa é viver, outra é durar, as duas coisas devem pretender a Medicina.
Esta é uma Lei da Sociedade e seus movimentos por liberdade, atenção, justiça e harmoniosa convivência entre pessoas iguais e ao mesmo tempo diferentes.
Que esta IV Conferência, com altivez e sabedoria, reafirme e consolide seus princípios.
Muito obrigado a vocês.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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