Cavalo de Tróia

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 19 de fevereiro de 2012.

Atenas explodiu em fogo e cinzas quando deixou entrar na Grécia o Fundo Monetário Internacional (FMI), o mais conhecido Cavalo de Tróia da moderna era financeira. Os antigos heróis gregos, que costumavam oferecer o falso presente com o intuito de violar a fortaleza do inimigo, agora são obrigados a recebê-lo. A preparação para a ocupação começou um pouco antes pela desmoralização prática da sua democracia. Aconteceu quando o governo foi impedido de ouvir o povo e realizar um referendo sobre a proposta da União Europeia para o enfrentamento da crise econômica que vive o país. Pouco depois foi aviltada a autonomia da nação quando seu parlamento aceitou a imposição de um primeiro ministro não eleito e dócil às manipulações que os bancos fazem sobre Berlim, Paris e Bruxelas.

É difícil compreender o conceito de austeridade que acompanha missões econômicas transnacionais desse tipo. No fundo o que buscam é a combinação de controle externo com perda de soberania do país… E boa dose de repressão policial. Mais incompreensível é perceber aonde chegou o nível dos atuais líderes da União Europeia: mesmo não tendo a mínima idéia do que o mundo deve aos gregos, estão certos que os gregos devem muito mais aos bancos.

Não há mais no sistema político uma inteligência rival à lógica simplificadora do sistema financeiro. Pelo contrário, o que se vê é a política frequentadora assídua dos temas e conceitos econômicos, sem espaço para a afirmação de qualquer outro tipo de reflexão ou campo do saber. Por isso que os ideais de racionalidade e busca da unidade, identidade, inteligibilidade e universalidade do processo de conhecimento, que tiveram origem na Grécia antiga, exigem virtudes mais complexas para nortear as ações humanas. Capazes de se mover de forma vigorosa e racional e separar o entendimento da ignorância, em busca do progresso do interesse comum. Nada disso se vê no combate da depressão econômica europeia atual. Que aceita, submissa, enfrentar dificuldades econômicas com leis da usura e, assim, reduzir suas nações às suas dívidas.

A intervenção, ao modo militar, sobre a soberania e o corpo e a alma de uma nação, feita com base em leis econômicas puras, desconhece as regras da boa filosofia política. Sem essas regras é impossível agir sobre comunidades de forma não arbitrária e livrar-se da mania, própria dos sistemas autoritários, que é a pretensão de escolher o melhor caminho para os outros. É um pacote caricatura: desestimula o crescimento econômico, obriga o país a reduzir salários, desemprega, não investe em políticas sociais, desindustrializa, abole aposentadorias e pensões, desprotege a saúde e a educação, para ter o direito de receber 130 bilhões de Euros. Com que objetivo? Economizar recursos e se endividar mais ainda para pagar a dívida dos bancos que enriqueceram fazendo a dívida, usando seus clássicos expedientes – investiram no país por sua conta e risco em épocas melhores; estimularam o crédito além da capacidade de pagamento das pessoas; subornaram autoridades para gastos desnecessários; aceitaram emprestar sem a garantia de que o faziam em investimentos produtivos.

Ao encarcerar a Grécia na zona do euro com um programa totalmente errado como este, o FMI retoma seu protagonismo conservador e ajuda, com elevadas taxas de juros, países a afundarem, mais ainda, em profundas crises econômicas e sociais. Melancólico é ver a história, tão conhecida da nossa América Latina, se repetir na lendária Grécia. Aliás, se a contribuição da cultura grega para a humanidade gerasse patente e copyright, os gregos certamente teriam a receber muito mais pela dívida cultural que todos temos com esse povo.

Os gregos são, até hoje, escultores admirados. O retrato do corpo humano realizado com perfeição e sensibilidade influenciou a arte em todos os períodos da história. A análise da realidade, sentimentos e valores tornou sua filosofia insuperável, em alcance e importância. Sócrates, Platão, Aristóteles, Tales de Mileto serão para sempre inesquecíveis, ao contrário dos sofismas formulados por Christine Lagarde, Angela Merkel ou Nicolas Sarkozy.

Com uma mitologia repleta de heróis, monstros e deuses, e sendo Atenas o berço da democracia, os gregos terão que se esforçar ao extremo para compreender, sem liberdade política, a lenda dessa recuperação econômica que agora se obrigaram a cumprir. Mas como são apaixonados por teatro, e sempre apresentaram ao ar livre suas peças, serão obrigados a ver a realidade dos dramas e tragédias encenados como sátira e comédia, mais adequados ao papel de nação coadjuvante que a Europa lhes reservou.

Paulo Delgado é sociólogo. Foi deputado federal.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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