Canal da Mancha

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 2 de dezembro de 2012.

“Melhor um zero do que um Nero” parece boa frase de efeito para definir governos medíocres. Era assim que alemães, ingleses e franceses se referiam à vacilante administração do marechal Paul von Hindenburg, que acabou servindo de escada ao pesadelo nazista.

Todos, na época, andavam traumatizados com o horror que foi a 1ª Guerra Mundial, um massacre de povos. No dizer de Churchill, “a meta de pôr termo aos mil anos de conflito entre a França e a Alemanha afigurava-se um objetivo supremo… Pois a Europa voltaria a crescer se fosse possível impedir novas oportunidades de brigas e fazer com que velhos antagonismos perecessem na realização da prosperidade mútua e da interdependência”. “O interesse supremo do povo inglês estava em aplacar a rixa franco-alemã”, sintetizava o político. Churchill, politico e pintor, havia se imposto um autoexílio em Cannes, depois de ter sido “tão decididamente descartado” da politica do seu país. Só que naquele momento crescia a tensão que perturbou a vida econômica do mundo, levou junto a democracia e a paz e refez de Churchill um líder essencial.

Diante dessa nova crise econômica, provocada pela gestão fraudulenta da abundância, a Europa vacila mais uma vez no caminho desenhado para levar à união total. E se vê confrontada com a necessidade de escolher entre acelerar o passo e queimar etapas na direção traçada ou recuar e abrir mão de muito do que se construiu até então. Costuma-se dizer que a União Europeia nunca deixa de aproveitar uma boa crise para aprofundar seus contornos institucionais. Essa lógica está estampada na inócua cimeira extraordinária do Conselho Europeu, que deveria deliberar, na semana passada, sobre o orçamento do bloco. No topo da cadeia do nonsense, Frau Merkel, diante do fracasso da reunião, avisava que não decidir nada “não seria o fim do mundo”. O problema é que a crise atual talvez não aguarde até que os governos se arranjem. De um lado porque não há nenhuma grande liderança pró-Europa unida e com capacidade de convencimento, e de outro porque muitos sentimentos separatistas e extremistas de toda sorte ganham voz e voto nos últimos dias.

O maior desafio da Europa é criar um nacionalismo europeu. Coisa difícil quando na verdade o movimento que há é de fragmentação mesmo dentro dos estados atuais, como a renovada vontade escocesa de sair do Reino Unido e da Catalunha dizer adéu para a Espanha. Na falta maior de lideranças apaixonadas pela Europa, o debate descambou para os detalhes e é bloqueado pelos próprios credos patrióticos dos maiores países.

As diferenças fundamentais seguem difíceis de equacionar e a crise econômica não tem uma única explicação. A imprensa inglesa ultrapassa o sinal da boa vontade e denuncia o caráter altamente artificial da prosperidade continental apontando o dedo para a França. Com irônica capa onde se vê uma saborosa baguete embrulhada com dinamite, a Economist detona: “A bomba relógio no coração da Europa”. O revide também vem na capa, dias depois, do parisiense Le Monde: “A Europa refém dos britânicos”. As analogias com o terror, em que os terroristas econômicos são sempre os outros, revela a irritação diante da opinião divergente. O clima de enfrentamento não é comum, já que os dois jornais (a Economist, idiossincraticamente, se diz um jornal e não uma revista) são liberais politicamente, com ligeira diferença de opinião econômica que não é originária de debate esquerda-direita, mas apenas de estilo.

O Le Monde é menos ortodoxo economicamente; enquanto o Economist tem o ar de mais “responsável” pelo que escreve. Sentindo-se porta-voz do establishment mundial, parece ver o Le Monde como um jornal de província, ainda que essa província seja Paris. Mas a diferença fundamental é mesmo a de que há, outra vez, um ponto de vista francês e um britânico para a Europa. Enquanto o Reino Unido sente-se mais à vontade com o mundo atual como um todo – que é, aliás, sua criação intelectual –, a França, completamente concentrada em Paris, tem uma estrutura institucional muito reticente em ver-se diluída na Europa, especialmente onde a Alemanha, com o poder já desconcentrado entre várias regiões, é, sem dúvida, maior à primeira vista. E quem está disposto a corrigir assimetrias partilhando poder com outros países ?

O maior problema para a Europa hoje é a França. Não por questões meramente econômicas, mas porque o país não trabalha pela união política do continente. Não por medo do ostracismo político de Paris no longo prazo, mas, talvez, por ser uma questão de honra não abalar a bem estabelecida estrutura burocrática francesa, congelada e hierarquizada. Já o Reino Unido insiste na sua vocação global. Em Londres, ser excluído ou estar de costas para o continente é só uma questão de ponto de vista.

 

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PAULO DELGADO é sociólogo.

 

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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