Arte de Vitral

A Constituição foi feita para servir ao cidadão, mais inundou a sociedade com atos, normas, súmulas e Leis

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 PERMITIU AO PAÍS sete períodos presidenciais em vôo civil com controlada turbulência institucional. Baseada em compromissos políticos, não em consensos, com a caligrafia trêmula própria da polarização que a escreveu, é um texto de arte de vitral. Mosaico de interesses que abrigam em sua natureza e revisão permanente.

Escrita para o predomínio da sociedade sobre o Estado, impôs restrições à vida social. O que não está explícito é explicitado por leis delegadas que ultrapassam, todo dia, na forma de medidas-provisórias, atos administrativos, portarias, decretos e súmulas, o princípio da razoabilidade da lei que todo cidadão tem o direito de pressupor como tolerável. A Constituição não começa com a definição dos poderes e sua arquitetura. Começa dizendo que seus objetivos e princípios devem estar a serviço dos objetivos sociais, individuais, econômicos e culturais da sociedade. Não tem sentido, pois imaginar que a ordem só pode ser ditada pela autoridade – ela é um atributo organizatório, fundada na autonomia do indivíduo que, com liberdade, se organiza, trabalha, prospera, cumpre seus deveres.

O direito brasileiro corteja mais a lei (não os seus valores) do que a jurisprudência e os costumes. Mas vigora o bom costume democrático que assegura que só um poder limita outro poder. No entanto, frente a um Legislativo avaro em boas leis e um Executivo pródigo em qualquer lei, o Poder Judiciário acaba por também assombrar o País com tantas decisões.

O Ministério Público, guardião da sociedade, justiça e democracia, com seu protagonismo, triunfa sobre os três. Querendo fazer-se da hierarquia dos poderes, inunda o Estado e a sociedade com sua presença. Interpretando a Constituição, mais do que sendo por ela interpretado, faz-se cego à compreensão de que a sociedade também é capaz de reconhecer, respeitar, conviver e defender seus direitos.

A questão tributária não tem status constitucional e desafia a compreensão estritamente jurídica. O desrespeito à limitação ao poder de tributar leva a Fazenda à desintegração dos fundamentos da ordem constitucional. Quando convoca o Leviatã Fiscal para recordes de arrecadação, faz-se hostil à prosperidade privada, e reduz o contribuinte e a empresa ao seu departamento de cobrança, ou ao delito. Mesmo sabendo que a financeirização da economia não conduz à posteridade.

Governar é abrir-se mais ao diálogo do que à regulação. Fugir do hábito da polarização, buscar um amplo acordo nacional que nos impulsione como força econômica e social, inovadora e competitiva. Para ampliar o progresso e fazer a Constituição mais grudada na sociedade, não como goma-arábica, que sufoca a energia e a criatividade, mas como asa da nação.

Novembro 2008

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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