A inconsistência da ONU

Estado de Minas e Correio Braziliense, domingo, 14 de agosto de 2011.

Não… não se trata de genocídio! São massacres intermitentes ou homicídios sucessivos, deu a entender a envergonhada funcionária do Departamento de Estado. E continuou indolente com as palavras, protegida pelo silêncio da ONU. A autoridade nem sempre tem noção de que, mesmo entre humilhados, é soberana a compreensão do vocabulário do outro. E todos ali sabiam bem que, diante do genocídio, o poder de intervenção arbitrária e o uso da força para impor a paz são parte da razão da existência das Nações Unidas. O que ela queria esconder é que não havia consenso e decisão entre os grandes países sobre o valor da vida humana naquela região do mundo. Sem acreditar no que ouvia, alguém perguntou: de quantos cadáveres precisam para chamar de genocídio?

Uma história de Ruanda, que poderia ser da Iugoslávia, do Timor Leste, da Somália, de Angola, da Chechênia ou de qualquer uma das 16 missões atuais que o Departamento de Manutenção da Paz (DPKO) mantém ao redor do mundo. Com a participação de 82 mil soldados vindos dos países pobres e 17 mil dos 15 mais ricos. Quem domina a ONU não lhe fornece tropas nem se subordina ao seu comando e controle.

A convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio é de 1946, uma das primeiras aprovadas pela Assembleia Geral. Crime inscrito no direito dos povos, está em contradição com o espírito e os fins das Nações Unidas. É anterior à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não são crimes políticos passíveis de clemência ou extradição. São graves, assim como os crimes contra a humanidade que ditadores promovem contra civis e opositores. Como ocorre agora na Síria. E só serão julgados pelo Tribunal Penal Internacional se o contorcionismo verbal e a inércia política deixaram de tomar o tempo da diplomacia que frequenta a entidade. Pois sem um padrão humanitário sólido para enfrentar massacres e tiranias, a institucionalidade internacional da ONU é uma gigantesca, cara e inconsistente burocracia.

Os objetivos e explicações incompatíveis que dilaceram as nações em guerra também estão presentes na gramática sem regras claras das Nações Unidas. Por isso, na maioria das vezes, a persuasão pelo uso da força externa, que possa deter o conflito, é mais propaganda do que realidade. Da mesma forma que o princípio da autodeterminação do Estado, este sim, tem sido tão útil ao arbítrio dos ditadores. Pois sempre encontram aliados nos escritórios confortáveis da política internacional e multilateral, onde os governantes tricotam sua ambição e sua vaidade por poder. Assim, só convocam a reunião quando já decidiram quem detém, entre as partes em conflito, o consentimento para autorizar a intervenção. Só se movem ouvindo o agressor. Nunca os consultados são as vítimas civis: mulheres, crianças e desarmados em geral.

E vão além. Em decisões nem sempre tomadas com imparcialidade e objetividade – até na formação dos contingentes militares muitos dos países que fornecem tropas para a missão não escondem seus preconceitos e simpatias por um dos lados –, a ONU sempre chega atrasada e dividida à terra arrasada. Como barata tonta e sem ter responsabilidade de governo, não encontra condições de oferecer segurança coletiva nem recursos humanitários consistentes e imediatos.

Centrado na ideia das metas militares de imposição da paz, e do dominado por ambições de hegemonia dos países que compõem, o sistema das Nações Unidas perde a força. E fracassa nos países dominados por ditaduras ou ferocidades tribais, étnicas e religiosas. Não há independência operacional nem orçamento suficiente para aplicar no desenvolvimento econômico e social dos países onde atua.

Claro que a ONU não é um governo mundial. Mas ditadura, assassinato de civis, não são assuntos internos e precisam ser condenados. Pouco ajuda, também, a subdivisão de países em grupos de pressão e interesse, essa mania “G” seguido de um número, só pata sócios: nacionalismos que retiram a força das decisões multilaterais. Por isso, cresce o desrespeito a regras partilhadas, especialmente sobre o caráter universal dos direitos humanos, a liberdade de opinião e o convívio harmonioso mundial.

Nada é pior para as Nações Unidas do que aceitar ser subcontratada de politicas nacionais de defesa e ser vista como parte do conflito.

Paulo Delgado, sociólogo, foi deputado federal.



Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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