A felicidade é prisioneira da má administração

A felicidade é prisioneira da má administração

O Globo – 4 de fevereiro de 2013.

O Brasil é um país espinhoso e impreciso. A felicidade é prisioneira da má administração das cidades onde a autoridade, flagrada em omissão, clama pela redundância das leis. Entre nós, a esperança, se escandaliza e vira pó. Em qualquer família estão os pais dos jovens triturados em Santa Maria. Tragédias evitáveis e arbitrariedades são manifestações replicantes do terror na vida cotidiana.

O plenário da Câmara dos Deputados não tem habite-se e reúne mais deputados do que o Brasil precisa. Superlotado, o lúgubre vespeiro que é seu interior, não resiste ao pânico. Se houver sincera agitação, por medo ou violência, metade dos deputados morre esmagada, para alegria de quem não vê seriedade na política. Não há janelas, saída de emergência, tudo é carpete, pelas portas não passam duas pessoas às pressas. Até recentemente, nos ministérios não havia escadas contra fogo. Quem rumina mórbidas fantasias da destruição dos três poderes fique sabendo que a maioria das prefeituras, fóruns e câmaras de vereadores funciona sem alvará.

O Brasil só fiscaliza o que pode arrecadar. Não há tragédia na Receita Federal ou no Departamento de Trânsito, que fez da multa forma fácil de arrecadar virando sócio do delito. O prefeito derrotado confia nas férias de verão do Ministério Público e não recolhe o lixo para, assim, entupir o bueiro do seu sucessor e matar os eleitores que não o reelegeram. A família modesta, que sofre de tragédia seletiva nas cidades, é constantemente vencida pela justiça, vendo ficar impune a morte de seus filhos.

Entre nós, em muitos casos, o coletor de multa é o impostor. O Estado encoraja e promove o servidor que converte problema em arrecadação.

No Rio, a polícia afirma sua autoridade desrespeitando a lei: estaciona na contramão, coloca carro na calçada. Assim, ilegal, imagina intimidar o criminoso. Finge não saber que ter temor à lei não implica guardar por ela simpatia ou compromisso. Observar o mau exemplo estimula comportamentos marginais: quantas vezes a intimidade de alguém com a autoridade é típica de foras da lei.  Mas quando a degenerescência dos costumes ceifa a vida de nossos filhos, porque justamente nunca houve interesse por suas almas, a raiva e a dor nos deixam furiosos e impotentes.

Os remetentes das tragédias são cada vez mais previsíveis e abordáveis. E como perceberam que a indignação com o erro se tornou conformista, vão em frente com seus negócios, dispostos a pagar pequenas multas pecuniárias. São pequenos deslumbrados, gangsteres, mas que certamente nunca imaginaram como destinatários, por conta de seu egoísmo e irresponsabilidade, a tragédia que é deixar os pais órfãos dos seus filhos.

O morticínio de Santa Maria revela um copo cheio até a borda, pronto para fazer transbordar a resignação da sociedade com o desamparo dos seus jovens, diante da falsa segurança das cidades. Em pouco tempo, nada daquela tragédia será mais notícia. Outras virão, como banalidades de um mundo indiferente e velho que se cala.

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PAULO DELGADO é sociólogo.

 

 

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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